Quando se fala em violência doméstica e familiar contra a mulher, a primeira ideia que vem à mente da maioria das pessoas é a situação da agressão física, caracterizada por ofensa à integridade ou saúde corporal. Entretanto, além dela, a Lei Maria da Penha, em seu artigo 7°, enumerou outras quatro formas de agressões: sexual, patrimonial, moral e psicológica.
Aqui, será dada atenção especial à violência psicológica, que, recentemente, foi elevada à categoria de crime, com a edição da Lei 14.188, de 28 de julho de 2021, que alterou dispositivos do Código Penal Brasileiro e da Lei 11.340/2006. Mas, antes de falar do novo tipo penal propriamente dito, faz-se necessário entender essa modalidade de agressão do ponto de vista legal.
Apesar de antiga e estrutural, a violência psicológica contra a mulher foi negligenciada durante muito tempo pelo legislador brasileiro, até mesmo por sua dificuldade de comprovação. Trata-se de uma modalidade de agressão “sutil”, muitas vezes imperceptível pela própria vítima, mas que pode deixar marcas tão profundas quanto a violência física, na medida em que atinge o estado emocional da ofendida, maculando sua existência intrínseca.
A questão teve como marco a Lei Maria da Penha, que trouxe sua primeira definição jurídica. A partir daí, abriu-se uma ampla discussão jurídico-social. Até que, posteriormente, a Lei 13.772/2018 alterou a Lei 11.340/2006 e definiu a violência psicológica como:
qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Do mesmo modo que ocorreu na Lei Maria da Penha, a definição dada pela Lei 13.772/2018 também se baseou na Convenção de Belém do Pará (Decreto 1.973/1996) e inovou na tentativa de afastar o senso comum patriarcal de que a mulher naturalmente estaria submissa ao homem.
Como se nota, ao reconhecer a subordinação psicológica como ato de violência, a legislação rompeu com as ideias arcaicas de que as pessoas não possuem igual valor e que os comportamentos sociais seriam delimitados biologicamente.
Não resta dúvida de que a violência psicológica é uma das modalidades de agressão que sustenta a assimetria entre homens e mulheres, especialmente no ambiente doméstico, e que, quase sempre, resulta também em violência física como recurso para se instituir; ou seja, quando as agressões psíquicas deixam de sustentar a hierarquia entre homens e mulheres, aplica-se a violência física, para tentar manter a subordinação das mulheres.
Assim, a violência psicológica pode ser colocada como a inicial do ciclo da violência sofrida pelas vítimas dentro de seus relacionamentos. Com a prática dela, o agressor cria uma relação de dependência e submissão entre ele e a mulher, controlando suas ações e ignorando suas liberdades. Em caso de desobediência, outras modalidades de agressão são aplicadas. Desse modo, eliminar a violência psicológica é fundamental para uma possível redução das demais formas de violência.
Objetivando erradicar esse tipo de agressão, preservar a autonomia da vontade da mulher e o direito fundamental “a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Convenção de Belém do Pará, Decreto 1.973/1996, art. 3º), a Lei 14.188/2021 incluiu no rol dos crimes contra a liberdade, tipificados no Código Penal Brasileiro, a violência psicológica contra a mulher, acrescentando o artigo 147-B, com a seguinte redação:
Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
Da leitura do dispositivo em apreço, infere-se que o novo crime é de ação pública incondicionada. Ou seja, a propositura da demanda independe da vontade da parte ofendida. O membro do Ministério Público não necessita da representação da vítima para oferecer a denúncia pela prática da violência psicológica contra a mulher. Trata-se, pois, de ação penal de iniciativa pública.
Nada mais justo que seja assim, dada a gravidade do delito, que causa o cerceamento da capacidade de autodeterminação da mulher e gera abalo emocional, por meio da degradação ou do controle das suas ações, capaz de criar traumas e até mesmo perturbação à saúde mental da vítima. Ademais, esse tipo penal geralmente se concretiza pela ameaça e se a pessoa agredida se sente ameaçada, dificilmente terá coragem de denunciar as agressões verbais que sofre.
Aliás, o medo de sofrer mais agressões ou de não conseguir recursos financeiros para sustentar os filhos ou se autossustentar, associado ao sentimento de impunidade, é o principal fator que impede a vítima de colocar um ponto final no relacionamento abusivo e violento, bem como dificulta a formalização de uma denúncia contra o companheiro ou ex-companheiro.
Nesse diapasão, o novo crime vem tutelar justamente o direito fundamental à liberdade da ofendida de viver sem medo. O direito de conviver sem fragilidades ou traumas emocionais implantados dolosamente por terceiros. Não se deve olvidar que é preciso o dolo do agressor para sua concretização. Protege-se a integridade mental da mulher em sua totalidade.
Um tópico que gera preocupação é a comprovação do crime. Não é qualquer briga de casal que configura violência psicológica, sob pena de banalização do instituto. Até porque eventuais discursões são inerentes à vida conjugal. É preciso que as ofensas tenham repercussão na saúde mental da mulher para a caracterização do artigo 147-B, do Código Penal Brasileiro.
A materialidade deve restar demonstrada por documentos médico-legais. O prejuízo emocional decorrente da violência psicológica (nexo causal) precisa ser apontado em relatórios clínicos e laudos periciais elaborados por médicos psiquiatras e psicólogos, nos termos do art. 158, do Código de Processo Penal Brasileiro.
Como se observa, a prova da consumação do novel ilícito penal exige a realização de um exame de corpo de delito. Todavia, a perícia psicológica não é de fácil constatação, devendo obedecer aos critérios da classificação internacional de doenças (CID-10), outra dificuldade é a falta de profissionais habilitados para a realização do exame e emissão de parecer técnico.
Em caso de flagrante delito, por exemplo, mesmo que a vítima e o agressor sejam conduzidos à delegacia de polícia, nem sempre haverá profissionais da área de saúde nas unidades policiais para avaliar a situação concreta. Há, portanto, uma necessidade urgente de que o Poder Público (como um todo) equipe seus núcleos de atendimento à mulher vítima de violência doméstica com corpo técnico (profissionais de saúde) aptos a lidar com a problemática, para evitar a impunidade por falta de provas.
Apesar das críticas de alguns juristas (baseadas no receio de eventual banalização do crime ou de proteção deficiente), entende-se que a criminalização da violência psicológica veio em boa hora, ante o elevado número de vítimas de agressões morais, principalmente após o período de isolamento social (quarentena) imposto pelas autoridades sanitárias, como forma de coibir a propagação do vírus Sars-Cov-2.
Para se ter uma noção da dimensão do problema, o relatório do Instituto Patrícia Galvão divulgou que 28% dos entrevistados conheciam uma mulher que foi agredida, durante a pandemia de Covid-19, pelo companheiro ou ex-companheiro, e que 60% delas sofreu agressões psicológicas e físicas.
Por sua vez, o Relatório Visível e Invisível de 2021, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou que, no ano de 2020, cerca de 13 milhões de mulheres acima de 16 anos sofreram algum tipo de ofensa verbal (insultos, humilhações ou xingamentos). Apontou, ainda, que “50,8% das mulheres que sofreram violência acreditam que a pandemia influenciou para agravar de algum modo a violência que sofreram”.
Nota-se, portanto, que o contexto pandêmico acentuou a situação e o novo tipo penal apareceu para dar proteção mais ampla e acessível à mulher, que há muito aguardava por essa providência legislativa. Pois, como já demonstrado, embora a Lei Maria da Penha definisse a violência psicológica, ela não criminalizava a conduta. Era paradoxal que o legislador brasileiro reconhecesse expressamente o comportamento como violador de direitos humanos (art. 6º, da Lei 11.340/2006) e, concomitantemente, não o criminalizasse.
Registre-se que, até o advento da Lei 14.188/2021, diversas ações enquadradas como violência psicológica representavam ilícitos civis, mas nem sempre configuravam algum tipo penal (já que, isoladamente, não eram consideradas crimes, nem contravenções). O máximo que poderia ocorrer, dependendo do caso concreto, era a classificação no formato de lesão corporal por ofensa à saúde (mental) de outrem (art. 129 do CP), constrangimento ilegal (art. 146 do CP), crime de perseguição (art. 147-A do CP) ou ameaça (art. 147 do CP).
A falta de um tipo penal específico envolvendo a violência psicológica dificultava o deferimento de medidas protetivas de urgência, apesar de os tribunais superiores e o art. 24-A da Lei Maria da Penha autorizarem a decretação de medida protetiva civil autônoma. Nesse sentido, o novo tipo penal preencheu a lacuna que existia. Ante o exposto, conclui-se que a criminalização da violência psicológica instituída pela Lei 14.188/2021 constitui um avanço no combate à violência contra a mulher e na preservação de sua integridade psicológica. Toda legislação que visa proteger a parte mais fragilizada da relação jurídica, erradicar a violência e os abusos é benéfica e merece ser aplaudida. Mas, deve-se ter atenção quanto a comprovação da materialidade do crime, para evitar sua banalização ou proteção ineficiente à vítima.
A Lei 14. 188/2021 está em harmonia com a “Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres” e com os ditames do Estado Democrático de Direito. Contudo, se não forem disponibilizados instrumentos para sua concretização, não haverá diminuição da quantidade de vítimas e tudo ficará apenas no plano formal, não atingindo a seara fática, não passará de mais um tipo penal criado para satisfazer o clamor social.
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