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A quarta onda de acesso à justiça: você a percebe?

  • Foto do escritor: Lúcio Braga
    Lúcio Braga
  • 4 de jul. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 6 de jul. de 2022

O presente texto tem como objetivo apresentar breves considerações sobre o tema resolução de conflitos e um dos grandes paradigmas que é apresentado para a nossa geração de profissionais que lidam com a resolução de conflitos: como se desenvolverão os mecanismos que têm como objetivo pacificar as divergências (particulares ou coletivas) no atual cenário do desenvolvimento da sociedade?


Isso porque, inicialmente, há de se reconhecer que o conflito é o objeto de trabalho de uma gama de profissões, incluindo-se os juristas. Não importa o ramo escolhido pelo profissional do direito, por exemplo, o conflito será sempre a razão da necessidade do advogado, do promotor, do juiz, dos auxiliares etc.


Segundo, nunca tivemos tantos conflitos como agora. Até porque nunca fomos tantos habitantes sobre a terra. Nunca vivemos tão próximos uns dos outros, nunca tivemos tantos emaranhados de normas, órgãos, representações, representantes, ou seja, torna-se realmente mais complexa a discussão dos direitos, sejam eles particulares ou coletivos.


Os números de processos protocolados anualmente, objeto de relatório periódico do CNJ “Justiça em números”, mostra claramente a crescente judicialização dos conflitos. Isso nos faz observar que não é por falta de conflitos que o profissional do direito perderá seu lugar na consecução da justiça.


Terceiro, e tão-somente para limitar em três variáveis das muitas possíveis, temos as mudanças sociais, culturais, comportamentais do mundo pós-globalização e tecnológico. Do mundo líquido tão bem analisado pelo pensador contemporâneo Zygmunt Bauman, com conceitos sociais, forma e desenvolvimento fluidos, que desafiam os rígidos pensamentos sobre estes aspectos das relações políticas e sociais.


A questão que se coloca é o reconhecimento que nesse cenário, trabalhar com o conflito e a sua forma tradicional de resolução apenas contribui para agravar a chamada crise do sistema judicial. Pior, contribui para a ineficiência do Poder Judiciário, gerando crescente insatisfação e descrédito junto à população, que acaba por enfraquecer um Poder do Estado e o Estado Democrático de Direito, em última análise.


Mas do que estamos diante? Qual a “nova realidade” que surgira após a passagem dessa quarta “onda renovatória”? Para entender melhor, vamos esclarecer brevemente o que são as “ondas renovatórias” e lembrar das ondas anteriores.


As “ondas de acesso à justiça”.


O estudo das “ondas renovatórias do Direito” ou “ondas de acesso à justiça” foi idealizado pelo jurista italiano Mauro Cappelletti no livro “Acesso à Justiça”, escrito em parceria com o também jurista, o estadunidense Bryant Garth. Este clássico do direito contemporâneo foi escrito em 1978 e publicado no Brasil dez anos depois, em 1988.


No livro os autores propõem um exame metodológico da ciência jurídica a partir dos aspectos políticos do processo, identificando as “ondas renovatórias” como momentos a partir do qual o Direito teve de reconhecer certas necessidades ou condições para que não viesse a tornar-se inviável o acesso à justiça. Estas ondas não são cronológicas e estáticas, ou seja, não ocorreram em ordem e sua influência se renova no tempo, em especial através do processo e debate legislativo, mas também na aplicação da norma no conflito apreciado.


A primeira onda, por exemplo, diz respeito ao reconhecimento dos obstáculos econômicos para o acesso à justiça. Tornou-se evidente, independentemente do sistema legal de um país, que garantir o acesso à justiça aos menos favorecidos economicamente era uma necessidade, sob pena da completa elitização da justiça e todos os desequilíbrios sociais que disso decorreriam.


A Lei de Assistência Judiciária Gratuita, a Lei n. 1.050, datada de 1960, se insere nesse contexto. Permitir que os mais pobres pudessem litigar sem ter custos para isso permitiu, sem dúvida, a democratização da atuação do Poder Judiciário. Apenas para demonstrar o quanto é presente essa primeira onda, é a partir dela que muitos juristas sustentam o argumento de retrocesso social com as alterações trazidas no processo do trabalho, para impor ao trabalhador a possibilidade de arcar com o ônus sucumbencial.


A segunda onda de acesso apontada por Cappelletti decorre da identificação da necessidade do acesso à justiça para a tutela dos direitos difusos e da coletividade. Não é somente importante que todos, independentemente da condição econômica, tenham acesso à justiça, mas que a Justiça também pudesse analisar demandas que interessam a determinados grupos com interesses comuns.


A Lei da Ação Civil Pública (lei n. 7.347/1985) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) são normas nesse sentido. Afinal estas leis possibilitam a judicialização de tutelas que podem beneficiar sujeitos indeterminados, mas que compartilham das mesmas situações fáticas e jurídicas, como os consumidores.


Embora esta onda se veja de forma clara e seja cada vez mais acolhida no seio profissional e acadêmico, a tutela dos direitos coletivos, vale lembrar que dois artigos que possibilitariam a conversão de ações individuais em ações coletivas no CPC apresentado pelo Congresso Nacional foram vetadas pela então Presidenta Dilma Russef, os artigos 333, e 1.015, XII.


As razões do veto mostram a complexidade do ainda pleno desenvolvimento desta segunda onda. Vejamos: "Da forma como foi redigido, o dispositivo poderia levar à conversão de ação individual em ação coletiva de maneira pouco criteriosa, inclusive em detrimento do interesse das partes. O tema exige disciplina própria para garantir a plena eficácia do instituto. Além disso, o novo Código já contempla mecanismos para tratar demandas repetitivas. No sentido do veto manifestou-se também a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB."


A terceira onda renovatória reconhece a necessidade de buscar novas formas de acesso aos mecanismos jurídicos. Trata do acesso à justiça em sua concepção mais ampla, primando pela efetividade na resolução dos conflitos. Há, aqui, o mais forte reconhecimento da chamada “crise do Poder Judiciário”, identificada tanto pelo excesso de demandas a ele submetidas, como pela perda da qualidade da tutela prestada.


A mudança desse paradigma está em plena evidência atualmente. Nunca se falou tanto sobre métodos adequados de resolução de conflitos, especialmente mediação e arbitragem. Mesmo porque, reconheçamos, estamos na iminência do colapso do sistema judicial tradicional, que, caso não se reinvente, passará a ser fonte de conflitos, ao invés de solucioná-los.


Esta onda renovatória influenciou fortemente o atual CPC. A conciliação e a mediação (judicial e extrajudicial) e a arbitragem ganharam o reconhecimento legal como ferramentas eficazes na resolução dos conflitos. Amparada na autocomposição e na livre autonomia de vontade, esta onda reconhece o papel de outras ferramentas não judiciais, mas úteis para o apaziguamento social.


É fácil perceber que esta mudança não se limita pelo reconhecimento meramente legal, mas pela mudança de visão imposta a todos os envolvidos no processo (advogados, juízes, MP etc.), incluindo as partes, de quem se espera, hoje, mais lucidez e maturidade para resolver de forma eficiente os seus próprios problemas.


Decorrente da ideia trazida pelo “Tribunal Multiportas”, há, de forma evidente hoje, o reconhecimento de que não há uma só forma de resolver o conflito, o processo judicial tradicional pautado pela adversariedade e competitividade. É possível, também, a utilização de institutos e técnicas judiciais e extrajudiciais que visam auxiliar as partes para que o conflito seja definitivamente resolvido, amparado na autocomposição e cooperação.


A quarta onda: a necessidade da humanização dos profissionais do direito.


A quarta onda renovatória já não foi escrita por Cappelletti, mas pelo seu discípulo, o jurista australiano Kim Economides, em artigo intitulado “Lendo as ondas do ‘movimento de acesso à justiça’: Epistemologia versus metodologia?”, publicado já na segunda metade dos anos 1990.


Esta onda renovatória vai além da terceira, pois não reconhece apenas a necessidade do desenvolvimento de formas variadas para a resolução dos conflitos, mas que, de todas as formas, é necessário humanizar o processo de resolução de conflitos. Kim Economides propõe uma verdadeira renovação da epistemológica do direito e na formação dos profissionais jurídicos desde o ensino nas faculdades.


Afinal somos treinados na faculdade para olhar o conflito de forma negativa, como algo a ser evitado ou repelido. Nas aulas de IED, por exemplo, somos ensinados que o “o Direito é um mal necessário” e que surge “onde falta a moral”. Nas aulas de processo, aprendemos a usar as nulidades processuais, a jurisprudência defensiva, para evitar o exame do mérito, verdadeira razão de ser do processo.


Na faculdade, não há a preocupação em mostrar para o aluno a realidade da resolução de conflitos na comunidade da qual eles, aluno e professor estão inseridos. Muito pelo contrário, se alimenta demasiadamente a falsa imagem de que a ciência jurídica é um trampolim para uma vida econômica mais estável. Não há verdadeiramente na formação acadêmica a conscientização dos jovens estudantes sobre a realidade e os problemas sociais.


O grande desafio que se apresenta nessa quarta onda é: como torná-los profissionais atentos e sensíveis a toda a estrutura econômico-politico-social que os rodeia? A solução passa, inexoravelmente, pelo desenvolvimento de visão crítica do sistema. Essa é a razão de se dizer que esta onda objetiva uma revisão epistemológica do direito. Isto é, desenvolver uma nova visão sobre os postulados, conclusões e métodos da ciência jurídica.


Trata-se, por exemplo, de não mais observar o conflito como uma doença a ser tratada, mas como uma oportunidade de melhoramento da convivência social e coletiva. Afinal, o conflito é um fenômeno natural da vida em sociedade, e tende a se acentuar, uma vez que vivemos mais, com mais pessoas e em espaços menores, como ressaltado no início.


O leitor não percebe que de nada adianta resolver pontualmente um conflito e não tratar as verdadeiras razões da existência daquele conflito? Quantos advogados não atuaram em repetidas demandas envolvendo a mesma família, trabalhando do divórcio, na revisão da pensão, na revisão da guarda e na exoneração? Quantos inventários estão parados nos tribunais por posicionamentos irredutíveis de herdeiros baseados somente nas relações ruins com os parentes?


Opiniões, posicionamentos inflexíveis, adversaridade, entre outras condutas violentas pautam incontáveis processos que, fatalmente, têm chance reduzida de satisfazer a qualquer das partes. É, portanto, tempo de desenvolver nova metodologia para a resolução dos conflitos, onde o ser humano passe a ser protagonista, não importando a função ou os interesses desempenhados na atividade.


Este debate ganha contornos ainda mais importantes quando consideramos a inteligência artificial – ferramenta emblemática da desumanização – como ferramenta do processo e da Justiça. A quarta onda renovatória apresenta a resposta para a pergunta da atualidade: os profissionais do direito serão substituídos por robôs? Sim, serão substituídos aqueles que não souberem se humanizar.


Você percebe agora a necessidade da mudança de paradigma, o tamanho do desafio? Não se trata apenas do Direito, mas de como vemos a vida. Se nos esforçamos em apenas repetir, e não criar; em copiar e colar, e não em reinventar, seremos facilmente substituídos por máquinas e coisas.


No fundo, a quarta onda nos traz uma pergunta indigesta: o que nos torna humanos? Somente tendo esta resposta em nível pessoal a traremos para a vida profissional. Não existe profissional humanizado e ser humano robotizado ao mesmo tempo. Como sustentam os autores Frtjof Capra e Ugo Mattei, no livro “A Revolução Ecojurídica: o Direito Sistêmico em Sintonia com a Natureza e a Comunidade”, é necessário “reavaliar criteriosamente as atuais visões de mundo da ciência e do direito”.



Lúcio de Almeida Braga Junior é advogado e professor com mais de dez anos dedicados à prática, ao estudo e pesquisa sobre o processo civil e demais formas eficientes de resolução de conflitos, com enfoque na mediação e técnicas autocompositivas. Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Econômico Europeu e Internacional pela Universidade de Liège (Bélgica). Vice-Presidente da comissão de Direito Sistêmico da OAB/AC, membro da Comissão de Processo Civil da OAB/AC.

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