O verbo processar faz parte do inconsciente coletivo do povo brasileiro e revela muito sobre como lidamos com conflitos interpessoais, com isso, tornou-se um aspecto cultural e normal pensar que apenas o Judiciário pode resolver empecilhos e divergências comuns de uma vida em comunidade.
Em virtude disso, quase todas as pessoas, acreditam que apenas poderão exigir seus direitos com a ajuda de um terceiro desinteressado a serviço do Estado, ou seja, por meio do processo judicial, crendo piamente ser essa a única alternativa para obter uma justa resposta para sua pendência jurídica. Em decorrência dessa crença, o Poder Judiciário fica sobrecarregado, com processos que poderiam facilmente serem resolvidos fora do âmbito da Justiça.
Isso foi provado pela Base Nacional de Dados do Poder Judiciário, organizada pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que contabilizou 80.129.206 (oitenta milhões, cento e vinte e nove mil e duzentos e seis) processos em andamento nos tribunais e varas do Brasil, atualizado até o dia 31 de março de 2022. Isso significa que, para cada 3 (três) brasileiros vivos, há 1 (uma) ação em tramitação no Judiciário.
Com isso, o cidadão precisa aguardar 11 meses, por uma sentença, na fase de conhecimento, somando-se mais 6 anos e sete meses na fase de execução, ou seja, em média, somente após 7 anos e 6 meses para que possa de fato receber “o que é seu por direito”. (Anuário da Justiça Brasil 2022).
Reforçando essa realidade, além do fator cultural citado anteriormente, outro grande bloqueio para a advocacia extrajudicial é a grade acadêmica dos cursos de Direito das diversas faculdades espalhadas pelo Brasil, que muitas vezes, demostram mais importância para solução dos conflitos utilizando o Judiciário de forma direta, por meio do Processo Judicial contencioso.
Faltando assim, o ensino a respeito da utilização indireta do Judiciário, por meio dos serviços notariais e registrais, que são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público (Art. 236 da Constituição Federal). Sobre o qual, eu só tive a oportunidade de conhecer esse outro lado da Advocacia ao trabalhar por cerca de 1 (um) ano no 1° Tabelionato de Notas da capital onde moro, atuei em diversos setores, e pude ter a oportunidade de auxiliar vários advogados nesse terreno pouco explorado aqui no Acre, até o dado momento.
A advocacia extrajudicial é, portanto, fruto de um processo chamado “desjudicialização”, que traz a ideia essencial de uma jurisdição “fora do Judiciário”, como um meio alternativo de solução de demandas, dotado de celeridade, eficácia, autenticidade, publicidade e, inclusive, oponibilidade erga omnes.
Decorre do pragmatismo processual com uma pitada de modernidade, que resumidamente proporciona uma solução rápida e eficaz a certos problemas da sociedade, dotados de consensualidade, e caso não, realiza-se a promoção do diálogo entre as partes, sendo verdadeiros instrumentos da Justiça Preventiva, fazendo com que apenas demandas verdadeiramente litigiosas adentrem no Judiciário.
Diante disso, a função do(a) advogado(a) que atua no extrajudicial é buscar mecanismos alternativos para a resolução e tratamento de conflitos, ajuizando uma ação judicial somente de forma subsidiária. Trata-se do chamado Sistema Múltiplas Portas de acesso à Justiça, criado por Frank Sander, da Universidade de Harvard, em uma conferência no ano de 1976 (Varieties of Dispute Processing).
No Sistema Multiportas há várias possibilidades de resolver as lides, como a negociação, mediação, conciliação e arbitragem extrajudicial (art. 3⁰, §3⁰ do Código de Processo Civil), mas inclui também, a alternativa de utilizar os Órgãos Delegatários, ou seja, aqueles que receberam poderes para representar o Estado, a exemplo dos Cartórios de Registro Civil, de Imóveis, de Títulos e Documentos, e Tabelionatos de Notas, como afirma o Art. 236 da Constituição Federal, que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público e funcionam sob fiscalização do Poder Judiciário, servindo como mais uma porta de acesso à Justiça.
Pode-se pensar, entretanto, que oferecer um tratamento às demandas fora do Poder Judiciário, acarretaria uma perda significativa na qualidade das garantias constitucionais, ou, da prestação jurisdicional; o que não passa de um pensamento equivocado, mantido pela ignorância.
Já que no Brasil o sistema multiportas, recebeu um grande embasamento com o advento do Código de Processo Civil de 2015, que trouxe também a possibilidade do procedimento de inventário em Tabelionato de Notas e do mesmo modo que o judicial, garante o direito das partes de receber sua herança, como diz o Art. 610 §1º do Código de Processo Civil:
“Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras”.
O Código de Processo Civil de 2015, também inovou o procedimento de usucapião, em seu Art. 1.071, onde acrescentou o art. 216-A na Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), ao dizer:
“Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado...”
Essa forma de atuação especializada em mecanismos alternativos, ainda é recente entre os advogados acreanos e é regulamentada também por meio dos provimentos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a exemplo do provimento de n° 65 de 14 de dezembro de 2017, que estabeleceu diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial, nos serviços notarias e registro de imóveis.
A prática da advocacia extrajudicial ganhou mais uma novidade legislativa bem recente, por meio da Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, que trouxe o procedimento da adjudicação compulsória para o Extrajudicial, com a inclusão do art. 216-B na Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, modernizando e simplificando ainda mais os procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos.
É pertinente destacar que, a expressão “mecanismos alternativos” é frequentemente utilizada por não serem os tradicionais, uma vez que, não são diretamente do Judiciário, mas, uma forma indireta do uso de seu poder decisivo, como antes explicado.
Os mecanismos alternativos oferecem mais liberdades aos interessados (soluções não adjudicadas), dentro, é claro, dos limites do ordenamento jurídico. Todavia, alguns autores defendem que esses mecanismos são complementares, já que, priorizam a pacificação social, sendo tais finalizados em uma Escritura Pública, ou acordo extrajudicial homologado judicialmente, equivalendo desta maneira, a uma sentença judicial, pois, dotada de fé pública e de força executiva. Sendo assim, importantes instrumentos, que complementam, perfeitamente o princípio constitucional do acesso à Justiça.
Perante o exposto, meu objetivo foi demonstrar que, a utilização dos Órgãos Delegatários na advocacia extrajudicial, materializam a implementação do movimento denominado "desjudicialização", promovendo maior amplitude na garantia constitucional do princípio do acesso à Justiça, juntamente com os princípios da efetividade e da adequação, pois não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto uma Instituição Estatal, mas, de facilitar o acesso à ordem jurídica justa, acessível também de forma extrajudicial.
Por conseguinte, é possível afirmar que a justiça é verdadeiramente alcançada quando os conflitos solucionam-se pelo consenso, tendo em consideração que, não se promove a paz resolvendo só uma parcela do embrulho (controvérsia); já que o alvo é a pacificação do conflito trazendo a satisfação para todas as questões que envolvam as aspirações dos interessados.
Dado que, o objetivo central da jurisdição voluntária extrajudicial é racionalizar o tratamento das lides, ao oferecer uma resolução mais adequada para a demanda em questão, com efetividade, celeridade e baixo custo. Isso favorece a observância da nossa responsabilidade de defender a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas, por isso, não podemos esquecer que ter acesso a justiça não se limita apenas ao poder judiciário. Sendo nosso dever motivar a jurisdição voluntária extrajudicial, para assim, prevenir a instauração de litígios. (Artigo 44. inciso I do Estatuto da Advocacia c/c o artigo 2⁰ § único, inciso V e VI, do Código de Ética e Disciplina da OAB).
Ana Brant. Advogada, atuação com ênfase no Extrajudicial, mestranda latu sensu em Direito Imobiliário e Direito do Agronegócio, integrante da comissão serventias extrajudiciais da OAB/AC, pesquisadora independente do Sistema Múltiplas Portas de Acesso à Justiça e outros assuntos inovadores da advocacia, currículo disponível também no portal Lattes CNPq.
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