Desde os primórdios, a criação e disseminação de notícias falsas são fenômenos presentes. O impacto de uma notícia falsa no movimento das massas já foi objeto de inúmeros estudos.
Um exemplo histórico marcante é o do imperador Nero, que atribuiu aos cristãos a culpa pelo grande incêndio de Roma em 64 d.C., desencadeando intensas perseguições, incluindo episódios de cristãos devorados no Coliseu. Contudo, a veracidade deste evento é atualmente questionada por historiadores, como evidenciado em um artigo de Brent D. Shaw no Journal of Roman Studies.
As provas são a matéria-prima do Judiciário, sem elas o Judiciário não possui o substrato para efetivar a justiça. O exercício da tutela jurisdicional, feito por um juiz responsável por julgar baseando-se apenas nas alegações das partes e nos indícios de ocorrência dos fatos indicados pelas partes, já não era fácil, todavia, mostra-se desafiador nos dias de hoje. Sobre a função da prova, Alvim (p. 280, 2023), aponta o seguinte:
A função da prova judiciária é formar a convicção do juiz sobre a veracidade dos fatos alegados pelas partes. Primeiro, ela cria a certeza quanto à existência dos fatos, e, depois, esta certeza, tornada inabalável pela exclusão de todos os motivos contrários, torna-se convicção (Amaral Santos). Diz-se, então, que um fato está provado, por se ter formado no espírito do juiz a certeza quanto à sua existência.
O desenvolvimento de novas ferramentas de Inteligência Artificial, capazes não apenas de gerar textos, mas também imagens e vídeos, juntamente com a popularização e acessibilidade de ferramentas de edição e manipulação de mídias, implica uma gama de novas possibilidades para a prática de novos crimes ou criação de provas falsas. Definitivamente, a sociedade e o Judiciário não estão preparados para lidar com essa realidade.
Cabe recordar o caso do prefeito de Manaus, David Almeida, que alega ter sido vítima de fake news, pois um áudio, criado por inteligência artificial por seus desafetos políticos, no qual ele ataca professores após um protesto, foi criado e amplamente compartilhado nas redes sociais. Ainda não temos um desfecho desse caso, mas chama atenção o contexto em que as alegações são inseridas. Se, após as investigações, for atestado que o áudio é de fato inverídico, tem-se um precedente preocupante.
Cita-se ainda o caso, trágico, diga-se de passagem, da criação da tese da “defesa deepfake do famoso”, inaugurada por Elon Musk em um tribunal americano. Numa entrevista publicada no YouTube, Elon afirma de forma categórica que os Modelos S e X da Tesla são dirigidos autonomamente com maior segurança do que por uma pessoa. Todavia, em meados de março de 2018, um homem morreu na Califórnia, pois seu Modelo X colidiu em uma rodovia enquanto o sistema de piloto automático estava ativado. A família ingressou com uma ação responsabilizando Elon e sua empresa pela morte. Os advogados, então, em sua defesa, alegaram que o vídeo foi adulterado, afirmando inclusive que nenhum vídeo ou áudio do famoso estaria livre de qualquer manipulação digital por meio de deepfake.
Aponta-se ainda os casos de falsos nudes criados por meio de IA, utilizando fotos de redes sociais. O problema atinge não apenas famosos, mas também estudantes. Infelizmente, os meios para a prática de tais atos deploráveis são facilmente acessíveis.
Inclusive, o Judiciário está saturado de casos em que a autenticidade de provas digitais é questionada. Prints de WhatsApp, por exemplo, já foram considerados pelo STJ no RHC 79.848 como não idôneos para valor probatório. Empresas como Verifact, DataCertify e OriginalMy emergem, oferecendo serviços de validação de provas digitais, inclusive utilizando Blockchain.
Tais casos chamam a atenção pela magnitude das possibilidades aventadas. Vivemos em um mundo cada vez mais conectado, com uma base de dados aberta de voz e imagem de milhões de pessoas em redes sociais. Temos que quase tudo pode ser criado, tanto para a prática de novos crimes quanto para manipular a tutela jurisdicional por meio de uma prova falsa.
A lentidão do Judiciário em lidar com essas questões, a ausência de diretrizes técnicas robustas, a falta de especialistas e o desinteresse geral dos julgadores são preocupantes.
Embora o título deste artigo possa parecer um "clickbait", ele reflete uma realidade emergente e preocupante. Afinal, se tudo pode ser manipulado, nada é confiável até que se prove o contrário e então entramos em um paradoxo.
Referências
ALVIM, J.E C. Teoria Geral do Processo. São Paulo, SP: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559643011. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559643011/. Acesso em: 04 jan. 2024.
Shaw, Brent D. The Myth of the Neronian Persecution. Journal of Roman Studies, [S.l.], v. 105, p. 73-100, Nov. 2015. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/journal-of-roman-studies/article/abs/myth-of-the-neronian-persecution/73AC9F872D273C643F4E910B87B1A234. Acesso em: 04 Jan. 2024.
CNN Brasil. Falsos nudes criados por IA criam risco de extorsão: relembre casos recentes. CNN Brasil, 25 maio 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/falsos-nudes-criados-por-ia-criam-risco-de-extorsao-relembre-casos-recentes/. Acesso em: 04 jan. 2024.
CONJUR. IA cria problema para justiça nos EUA com defesa 'deepfake'. ConJur, [S.l.], 13 maio 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-13/ia-cria-problema-justica-eua-defesa-deepfake/. Acesso em: 04 jan. 2024.
CNN Brasil. PF investiga uso de inteligência artificial contra prefeito de Manaus. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pf-investiga-uso-de-inteligencia-artificial-contra-prefeito-de-manaus/. Acesso em: 04 jan. 2024.
O AUTOR
Leonardo Silva de Oliveira Bandeira:
Advogado, Sócio-Administrador do escritório CRBS Advocacia, professor universitário, coautor da primeira norma regulamentadora de IA na advocacia brasileira.
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