Diálogo cada vez mais presente e atual é sobre a existência, ou não, de vínculo de emprego entre as empresas donas dos aplicativos de entrega e os motoristas que os utilizam.
A exemplo, temos os largamente conhecidos Uber, com o aplicativo de transporte de passageiros e o de entrega de alimentos, e o 99.
A Uber é sempre carro chefe nesse debate, tendo em vista que foi quem tornou popular tal segmento.
De um lado, uma parte da sociedade argumenta que os trabalhadores se arriscam em nome das empresas para entregar seus produtos e levar à efetivação os seus serviços e que por isso deve haver reconhecido o vínculo empregatício. De outro, argumenta-se que a relação é fundamentada na livre iniciativa e que os motoristas – entregadores – são profissionais liberais que apenas se utilizam das plataformas dessas empresas como meio de encontrar as demandas para suas atividades.
Não se nega a razão por trás do lado social dessa moeda. Os trabalhadores sempre estão no lado mais frágil das relações em que se encontram, diariamente batalhando pela renda necessária, e muitas vezes apenas suficiente, para o seu sustento e de sua família. Enquanto a outra parte dessas relações são as empresas que, mesmo com as dificuldades de empreender em países como o Brasil, ainda possuem mais condições que os trabalhadores, tendo em vista que têm a posse e propriedade do capital produtivo.
Mesmo se considerando o valor social da realidade do trabalhador, para se falar em vínculo empregatício, inevitavelmente se deve analisar sob o prisma jurídico, afinal, é o diploma legal – mais especificamente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – que define quais situações caracterizam um vínculo de emprego e como essa análise deve ser feita para que haja perfeita subsunção.
Assim, como o bom operador do Direito deve saber, em seu artigo 3º a CLT estipula os requisitos que devem estar cumulativamente presentes para que a relação seja reconhecida como vínculo empregatício. Quais sejam: onerosidade, não eventualidade, pessoalidade, subordinação e que o trabalho seja realizado por pessoa física.
Alguns doutrinadores unem os requisitos da pessoalidade e pessoa física em somente um. Particularmente, filio-me a essa ideia, tendo em vista que só pode se apresentar pessoalmente uma pessoa natural, física. Contudo, entendo a vertente hoje dominante de separar os dois requisitos, considerando que o próprio texto da lei taxa a expressão “pessoa física”.
Evidente, pois, que qualquer relação trabalhista que se queira enquadrar como empregatícia – portanto, subordinada à CLT – deve possuir todos esses requisitos.
Esse é o ponto que diferencia a análise social da análise jurídica do objeto estudado. Por mais que socialmente se entenda que aquela relação devesse ser protegida pelo diploma laboral, sem que os requisitos estejam presentes, não se pode fazê-lo.
Por outro lado, isso não significa que o lado social é inútil nesse debate. De modo algum.
Como já ensinava Miguel Reale em sua Teoria Tridimensional do Direito, o fator moral tem grande peso, dentre outras coisas, quando se trata de suprir lacunas legislativas quando da atuação do judiciário e em inspirar a elaboração de novas normas e reforma das já vigentes. É através deste último ponto que o lado social dessa relação pode influenciar sobremaneira com fito no objetivo de se auferir proteções legais aos trabalhadores de aplicativos. Contudo, o meio para se alcançar deve ser o legislativo. Enquanto isso não é feito, a análise não pode fugir do preceito legal já em vigor.
O debate sobre o tema sempre se renova quando a mídia divulga que o judiciário de algum país reconheceu o vínculo trabalhista entre a Uber e algum de seus motoristas, a exemplos recentes da França e do Reino Unido.
Nessa oportunidade, os defensores da corrente sociológica sobre o tema retomam a argumentação a fim de se alcançar o mesmo resultado no judiciário nacional.
Mas será mesmo que, apenas pelo judiciário de outra nação ter reconhecido o vínculo empregatício, o Brasil também já tem condições jurídicas e legais de reconhecê-lo?
Aqui no país, alguns TRTs já estão no movimento de conceder, seja em primeira instância ou na segunda, o vínculo empregatício entre a Uber – e plataformas do tipo – e os motoristas de aplicativo. Mas essas decisões ainda estão longe de ser uniformes ou, ao menos, predominantes. Até mesmo porque o pleno do TST ainda não se pronunciou, nem sumulou, sobre o tema.
De qualquer forma, podemos ter uma dimensão de como será uma decisão honesta do pleno do TST ao se pronunciar futuramente sobre o assunto, analisando o modo de trabalho dos motoristas de aplicativo e comparando com os requisitos da relação de emprego.
Analisemos requisito por requisito.
Pessoalidade e pessoa física: não há que se discutir muito sobre esse ponto, uma vez que de fato o motorista cadastrado no aplicativo é quem deve pessoalmente exercer o serviço. Caso ele terceirize, colocando outra pessoa para dirigir através de sua conta, ele estará a violar cláusula contratual com a plataforma de aplicativo. Ainda, o exercício da atividade se dá através do CPF, dessa forma, se trata de pessoa física. Portanto, é um requisito devidamente preenchido.
Onerosidade: uma vez que, em regra, o cliente do aplicativo efetua o pagamento para a plataforma e então esta transfere a porcentagem devida ao motorista, é possível reconhecer a existência do requisito em questão.
Não eventualidade: é nesse requisito onde podemos começar a ver a ausência do vínculo. Quem faz o seu horário de serviço é o próprio motorista da Uber. É ele mesmo quem decide quando irá trabalhar e quando não irá. Portanto, é possível que um motorista decida trabalhar somente aos finais de semana, assim, o requisito não estará preenchido. Por outro lado, caso seja um motorista que dirige pelo aplicativo diariamente, então o requisito estará lá.
Subordinação: aqui, por derradeiro, o vínculo passa a não existir. Isso porque o motorista não está subordinado à plataforma do aplicativo. É ele quem decide qual corrida irá aceitar e qual deixará passar. Ele até mesmo pode decidir cancelar uma corrida já aceita, mesmo que haja alguma sanção por isso, mas é da escolha dele.
Como já é possível perceber, em sendo necessário que todos os requisitos estejam presentes cumulativamente, o vínculo trabalhista entre empresas como Uber e os motoristas que utilizam a plataforma, não existe no ordenamento jurídico brasileiro atual. Isso porque falta o requisito da subordinação, e a depender do caso concreto pode faltar também o da não eventualidade.
Ainda, o fundamento da legalidade da situação entre empresas como Uber e motoristas, além dos requisitos já vistos, também são previsões legais como o constante no artigo 1º, IV da Constituição Federal, colocando os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamento da República.
Essa realidade atual não impede que futuramente haja modificação na legislação trabalhista para enquadrar essa atividade dentro da possibilidade de existência do vínculo laboral. Caso isso venha a ocorrer, será uma vitória para os defensores da corrente sociológica que pregam a necessidade de reconhecimento de vínculo.
Para tanto, baseando as suas aspirações, há dois pontos na Constituição Federal que possibilitam o diálogo legislativo com fito na modificação legal.
Ambos os pontos são previstos como objetivos da República Federativa do Brasil, no art. 3º da CF: construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) e erradicar a pobreza (art. 3º, III).
Tomando com mais ênfase os pontos de justiça e solidariedade presentes no inciso I, há alguns pontos da relação contratual entre Uber e seus motoristas que vão contra esses objetivos constitucionais.
O primeiro deles é a desproporcionalidade nos ganhos da empresa e do motorista. É claro que é da natureza do sistema capitalista essa desproporção. Mas o que se percebe empiricamente é que os motoristas necessitam fazer jornadas extremamente cansativas e longas para auferir ganhos minimamente considerados confortáveis. Isso iria contra a justiça prevista como objetivo Federal.
O segundo ponto é transferência parcial dos riscos da atividade para o motorista. Diante do lucro que evidentemente uma empresa como a Uber aufere, é imoral que ela transfira boa parte dos riscos da atividade para o motorista. A exemplo, pode-se mencionar acidentes de trânsito que envolvam o veículo do motorista durante um serviço pelo aplicativo. A Uber até possui um seguro para cobrir os prejuízos de acidentes assim, mas analisando as cláusulas contratuais, a cobertura é irrisória e consultando motoristas da Uber, vimos que há uma dificuldade imensa em conseguir fazer com que a empresa de fato honre essa obrigação contratual. No final, os motoristas assumem injustamente o ônus de um acidente.
Na esfera trabalhista, com relações regidas pela CLT, esses riscos são assumidos exclusivamente pelo empregador. O que de fato representa a sociedade justiça constitucionalmente prevista.
Por fim, motoristas alegam que a Uber, em específico, cria mecanismos de incentivo que procuram manter o motorista mais preso ainda, trabalhando com maior frequência. Relatam promoções que ela realiza, concedendo bônus e remuneração extra quanto mais tempo o motorista fica em atividade. Também regra penalidade para motoristas que cancelam muitas corridas. A 99, concorrente da Uber, tem inclusive a prática de limitar a 10 cancelamentos de corridas que o motorista pode realizar, passando disso o motorista fica suspenso por 30 minutos.
A corrente sociológica pode alegar que tais mecanismos depõem moralmente contra a plataforma, caracterizando abuso na relação, e por isso o vínculo deve ser reconhecido.
Contudo o aqui explanado, fica evidente que o ordenamento jurídico laboral brasileiro, em regra, não possibilita o reconhecimento de vínculo empregatício entre empresas de aplicativo e seus usuários motoristas. Os Tribunais Regionais que insistem em reconhecê-lo incorrem em erro na aplicação da lei.
Ainda assim, é sempre bom ficar atento aos detalhes do caso em análise para observar se há algum possível elemento específico que possa caracterizar o vínculo.
Por outro lado, há fundamentos fáticos sociais suficientes para ensejar uma mudança legislativa que passe a possibilitar o reconhecimento de tal vínculo. Depende apenas da boa vontade dos legisladores brasileiros.
Leonardo Vasconcelos é advogado, pós-graduando em Direito Contratual e Editor-Chefe da Revista Capital Jurídico.
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