Caro colega doutrinador, não fale do que não entende. Já dizia a sábia filosofia budista: esvazie sua caneca para aprender mais. Mas, como vamos tratar neste texto sobre tecnologia, permita-me fazer uma metáfora e dizer-lhe para esvaziar seu HD para então adquirir mais saber. É assim que Sócrates também entendia ao dizer que nada sabia.
A você, leitor, que está aqui nestas páginas virtuais com sua alma aberta e realmente disposto à verdadeira reflexão, deixe-me contextualizar sobre o que estou falando.
Recentemente, li um artigo de um doutrinador bem conhecido sobre o caso do magistrado que sentenciou, fundamentando-se em jurisprudência criada pelo GPT. Esse doutrinador tem boas ideias sobre sistema de precedente do CPC, suas críticas sobre o assunto fazem muito sentido e sempre me colocam a pensar. Contudo, quando fala sobre tecnologia, ele está em águas que não conhece. O que acontece quando se está em território desconhecido? Em regra, a pessoa se arvora em ideias pré-concebidas, com base muitas vezes em preconceito ou medo, e agride aquela área desconhecida, agride o novo e o faz muitas vezes por medo de ter que sair do lugar de onde tanto conhece.
É exatamente isso que sinto nas palavras desse doutrinador quando ele decide escrever sobre a intersecção do Direito com a tecnologia. Por não entender bem o funcionamento e as capacidades atuais da tecnologia, ele as ataca. Foi exatamente o que fez ao falar que o Chat GPT é um software de plágio, alegando que o sistema de inteligência artificial simplesmente colega um arcabouço de informações e dados para então criar algo a partir disso, desconsiderando toda a capacidade criativa que existe no uso dessa ferramenta pela mente humana. Pensa que a proposta da IA generativa de texto (inteligência artificial capaz de criar textos articulados) é receber um simples pedido e produzir um texto com base no amontoado de dados que ela (IA) possui e então o usuário irá simplesmente pegar esse texto e usar para os seus fins.
Ledo engano, nobre leitor. Infelizmente um engano bem comum.
Deixe-me explicar de forma bem simples como funciona uma inteligência artificial generativa de texto. Basicamente, ela é construída com algo chamado rede neural artificial, que de certa forma se inspira na rede neural humana. Esta rede neural artificial é treinada com uma enorme variedade de textos retirados de diversas fontes. O processo de seleção e treinamento é projetado para evitar o aprendizado de padrões indesejáveis ou prejudiciais.
Essa rede neural, com o treinamento, aprende sobre o mundo a partir dos textos que analisa. É um pouco como o nosso processo de aprendizado: conforme recebemos informações, nosso cérebro forma conexões entre neurônios. No caso da inteligência artificial, cada pedacinho de informação que ela aprende ajusta os seus parâmetros. Atualmente, o ChatGPT possui cerca de 175 bilhões desses parâmetros ponderados.
Quando o GPT recebe uma pergunta ou pedido, ele utiliza esses bilhões de parâmetros, que representam seu aprendizado acumulado, para gerar uma resposta. O processo não é exatamente igual, mas tem algumas semelhanças com a forma como nossa mente trabalha para conectar informações e produzir pensamentos.
O GPT, assim como as demais inteligências artificiais generativas de texto, não é um mero mecanismo de repetição de informação. Assim como nossa mente, em certa medida, ele é capaz de cruzar informações e gerar conhecimento, mas esse processo depende essencialmente da interação humana do seu usuário. É neste ponto em que a coisa começa a ser diferente do que o nobre doutrinador pensa.
O ser humano usuário da IA generativa de texto deve conhecer o funcionamento da ferramenta, suas limitações e como inserir adequadamente o pedido, contextualizando a demanda, para, por fim, fazer a revisão humana do trabalho criado pela IA.
Não é um simples trabalho de pedir, copiar o texto e usar. Existe todo um fluxo de trabalho envolvido.
Conhecedor de tudo isso, o Ministro Luís Roberto Barroso, na condição de presidente do CNJ, encomendou junto às conhecidas Big Techs (Microsoft, Google e Amazon) uma inteligência artificial que terá a proposta de integrar todas as plataformas utilizadas pelo judiciário brasileiro, fazendo com que cada Tribunal mantenha o seu sistema e essa IA jurídica brasileira faça a integração de tudo.
Aqui cabe uma futurologia: não sei se o Ministro já tem isso em mente, mas essa IA dando certo (e certamente dará) é o pontapé inicial para que os softwares de gestão da atividade dos advogados estejam alimentados por IA integrada aos sistemas dos Tribunais, possibilitando uma automação ainda maior, na qual a IA fará a minuta da petição, o advogado dará o OK (ou solicitará ajustes) para automaticamente ser protocolada nessa super IA jurídica. Mas deixemos isso para o tempo nos dizer.
O nobre doutrinador a que nos referimos levantou um questionamento: como os magistrados poderão confiar em uma minuta de decisão produzida por uma IA que não teve acesso à doutrina? Iríamos ficar presos somente aos dispositivos legais e à jurisprudência, uma vez que essa inteligência artificial conhecerá a jurisprudência?
Deixe-me explicar, colega: essa IA conhecerá a doutrina! Não somente através do seu treinamento, que dessa vez será focado e especializado no Direito brasileiro (iniciativa pioneira em todo o mundo, diga-se de passagem), mas também porque os próprios advogados cuidarão de dialogar com a doutrina em suas petições! Afinal, é para isso que nós advogados somos constituídos, para uma argumentação qualificada.
Ainda assim, mesmo que o debate doutrinário trazido pelas petições seja insuficiente, mesmo que o treinamento não contemple tudo, será função do magistrado estar com as rédeas nas mãos e deverá fazer a revisão humana do trabalho da IA, com base em todo o seu saber jurídico humano, sanando qualquer ponto falho ou erro. Não já é isso que os julgadores devem fazer em relação ao trabalho de seus assessores e estagiários? Não é novidade alguma.
Podemos deixar combinado que isso é um princípio do uso da IA nas atividades jurídicas: a supervisão humana.
Agora, você que está com a caneca vazia consegue compreender que estamos falando de uma sinergia entre inteligência humana e inteligência artificial? É um método produtivo que extrairá o melhor dos dois e fará uma composição jurídica única e mais fortalecida.
Particularmente, vejo que os textos como o que eu estou aqui combatendo são uma representação do medo do ser humano de ser substituído pela tecnologia. Esse medo não é algo novo e nem é somente em relação às inovações tecnológicas. A verdade é que o ser humano tem medo de ser substituído e pronto. Escrevi especificamente sobre esse assunto neste artigo.
Ataques à IA como o que o doutrinador empreendeu são fruto da soma do reflexo desse medo com a limitação que o jurista geralmente tem de imaginar a potencialidade das tecnologias do amanhã. A nossa categoria, embora obviamente haja exceções, não tem muita capacidade de abstração para imaginar o futuro e enxergar no estado atual da tecnologia as suas potencialidades futuras. Aristóteles manda lembranças.
O ChatGPT surgiu como um Big Bang no mundo, pois foi a primeira vez que o poder da inteligência artificial foi colocado à disposição da humanidade abertamente e de maneira tão acessível, gratuita e de fácil uso. Mas, não se engane, a IA ainda está germinando, sequer arranhou a casca do ovo. Contudo, ainda assim, já causou tantas disrupturas.
Se ainda nem conhecemos 1% do potencial da IA, tente fazer um exercício de imaginação e visualizar o mundo daqui a 10 ou 20 anos. Tudo o que essa tecnologia poderá fazer está muito além do que já foi feito pelo homem.
É claro que, por estarmos falando de uma tecnologia emergente, ela possui muitas problemáticas. Tecnicamente, o GPT ainda está longe da perfeição. Uma das principais limitações é a incapacidade de compreender contextos mais profundos ou nuances específicas de situações complexas, o que pode levar a respostas imprecisas ou incoerentes. Além disso, apesar dos avanços na filtragem de conteúdo, há o risco de reproduzir viéses existentes nos dados de treinamento, o que pode resultar em respostas parciais ou até mesmo inadequadas. É por isso que é necessária a participação ativa e supervisão humana sobre o trabalho do GPT.
Leonardo Bandeira, em seu artigo, destaca a importância da formulação precisa de prompts ao utilizar o ChatGPT no contexto jurídico, ressaltando que a eficácia da ferramenta depende significativamente da clareza e especificidade das solicitações do usuário.
Em termos sociológicos, a interação homem-GPT também traz outros desafios. A dependência excessiva na IA pode limitar o pensamento crítico e a capacidade de análise humana, especialmente quando os usuários assumem que a IA é infalível. É o que chamamos de complacência. Além disso, o fácil acesso a informações geradas por IA pode levar à desvalorização de conhecimentos e habilidades tradicionais, alterando a dinâmica das relações profissionais e educacionais.
Isso mostra que é crucial a continuação do desenvolvimento e aprimoramento desta tecnologia com consciência de suas limitações e impactos sociais.
Portanto, para encerrar essas minhas divagações, eu gostaria de ajudá-lo a entender que o ChatGPT não é um sistema que empilha informação, entrega um texto e nós o utilizamos sem muito trabalho. Claro, a IA tem suas limitações, e entendê-las faz parte do nosso processo de uso. Mas o potencial de criação que temos unindo o nosso trabalho humano com trabalho da inteligência artificial é sim capaz de transformar o Direito e ser algo produtivo, útil e benéfico para o ser humano.
Você, leitor, encontrará muitos textos pela internet sobre o pobre do GPT e seus concorrentes. Alguns os defenderão, como eu, outros o atacarão violentamente, como nosso colega doutrinador. O que peço é somente que você reflita sobre o que ler, experimente usar a ferramenta, esforça-te para melhorar a sua maneira de uso para que então você chegue às suas próprias conclusões. Se, após tudo isso, você concluir que este meu escrito está errado e que a IA não é útil, tudo bem, será uma conclusão válida.
Fato é que o mundo jurídico está em exponencial transformação com o advento de tecnologias tão avançadas como o mundo nunca viveu. Sinto somente uma pena que diante de tantas transformações ainda há doutrinadores que defendem que o Direito deve se manter o mais complexo possível (como já li nosso doutrinador escrevendo): o acesso pleno à justiça por parte dos jurisdicionados manda lembranças, neste ponto.
Por fim, retornando à pergunta inicial que fiz no título deste artigo: “IA Jurídica é software de plágio?” A resposta é um claro “não”. A IA Jurídica, como demonstrado, vai além da simples repetição de informações existentes. Ela interage com dados e os reinterpreta, criando conteúdo novo e relevante, sempre sob a supervisão e direcionamento humanos. Assim, longe de ser um mero instrumento de plágio, a IA Jurídica representa uma ferramenta inovadora que complementa e amplia a capacidade humana de análise e criação no campo do Direito.
LEITURAS INDICADAS
ChatGPT inventando precedente e a terceirização da Justiça: https://www.conjur.com.br/2023-nov-16/chatgpt-inventando-precedente-e-a-terceirizacao-da-justica/
Como Utilizar o ChatGPT para Pesquisar Jurisprudência?: https://www.linkedin.com/pulse/como-utilizar-o-chatgpt-para-pesquisar-leonardo-bandeira-wpywf
O Homo Sapiens e o medo da substituição por outro e pela IA: https://www.professorleonardo.com.br/post/o-homo-sapiens-e-o-medo-da-substitui%C3%A7%C3%A3o-por-outro-e-pela-ia
Barroso pede a big techs criação de "ChatGPT" para uso jurídico : https://www.migalhas.com.br/quentes/395504/barroso-pede-a-big-techs-criacao-de-chatgpt-para-uso-juridico
O AUTOR
Leonardo Fontes Vasconcelos:
Autor da primeira petição escrita com inteligência artificial no judiciário, assessor no Ministério Público do Estado do Acre, professor de Direito, advogado trabalhista licenciado. Membro vitalício da Academia de Letras Jurídicas do Acre, professor do quadro permanente da Escola Superior de Advocacia da OAB/AC. Coautor da primeira norma regulamentadora de IA na advocacia brasileira.
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