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  • Francisco Nathan de Amorim Silva e Pierre Elie Kassab

Judicialização do direito à saúde: a identificação do objeto litigioso para garantir a prestação

Um fenômeno não tão recente no mundo jurídico é a judicialização da saúde, ou seja, a propositura de processos judiciais pretendendo alguma prestação de saúde, como medicamentos, cirurgias, consultas ou, ainda, terapias multidisciplinares com psicólogo, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e afins.


Contudo, apesar do razoável tempo que esse fenômeno vem ocorrendo, várias questões jurídicas emergem no que tange, principalmente, ao tratamento das demandas, diante da especificidade da matéria.


Em alguns casos, vê-se também uma confusão acerca das regras processuais aplicáveis ou, ainda, a preterição do procedimento em favor do direito material discutido.


Nessa linha de raciocínio, talvez a dificuldade mais proeminente seja justamente aferir o objeto litigioso e, por conseguinte, fixar o ponto de discussão nos autos, questões que trazem uma série de outras consequências tanto em relação à existência ou não de litispendência quanto no que toca à alteração objetiva da lide no curso do processo.


Existem vários operadores do direito (juízes, promotores e advogados) que defendem que o pedido de ações como as enunciadas é de “tratamento de saúde para uma determinada enfermidade”, o que incluiria um sem-fim de prestações, autorizando, inclusive, que o usuário do SUS pretenda uma outra providência, diversa daquela indicada na petição inicial, no curso do processo.


Por exemplo, a ação é ajuizada para obter a consulta com um médico de especialização rara e, após o atendimento, realizado no curso do processo – seja por iniciativa administrativa, seja por uma tutela antecipada de urgência deferida pelo juízo –, a parte autora requer, nos mesmos autos a realização de uma cirurgia prescrita pelo profissional.


No caso em epígrafe, a concessão da nova pretensão pode ensejar uma inobservância da fila de atendimento estabelecida pelo nível de prioridade ou, ainda, um ônus infundado para o erário, ante a contraindicação do procedimento por outra condição clínica que enseje sua ineficácia ou risco de óbito.


Outra situação corriqueira é a que advém de demandas propostas para a obtenção de determinado medicamento, não incluído no SUS, que é deferido ao paciente e ao se mostrar ineficaz, substituído, pelo médico assistente, por outro fármaco. Nesses casos, muitos juízes suscitam dúvida acerca da possibilidade ou não de conceder a nova prestação naqueles mesmos autos, principalmente, eis que já angularizada a relação processual, ou seja, o réu citado e a contestação apresentada.


A fim de lançar luz sobre o assunto, é evidente a atecnia e a deficiência de qualquer linha de argumentação que finde por autorizar a concessão irrestrita de prestações de saúde, não indicadas na petição inicial, a qualquer tempo. Afinal, os processos não são ajuizados para discutir a existência de um Direito à Saúde ou a obrigação de receber atendimento, tomado de forma genérica (causa de pedir remota), mas sim para enfrentar a prestação de saúde concretamente pleiteada (causa de pedir próxima).


Sobre o assunto, a causa de pedir remota, tal como sedimentou o Superior Tribunal de Justiça, é a relação jurídica existente entre as partes, por outro lado, a causa de pedir próxima é o fundamento jurídico em si que justifica a pretensão deduzida no âmbito daquela relação jurídica. Por exemplo, a condição de usuário de Sistema Único de Saúde e o Direito à Prestações Positivas Estatais é a causa de pedir remota, enquanto a negativa de fornecimento de um medicamento padronizado¹ ou de uma consulta pela Administração é a causa de pedir próxima.


Ilustrando melhor, basta imaginar o caso de uma criança com Transtorno do Espectro Autista – TEA, que, diante da falta de estoque, busque o Poder Judiciário para obter o medicamento Risperidona, que é incorporado ao Sistema Único de Saúde e dispensado regularmente para a população.


Ora, é evidente que nesse caso, há pouco ou nenhum interesse da Administração em se contrapor ao fornecimento da substância em si, pois não se discute a condição de usuário contemplado pelo SUS para as prestações previstas pelo Poder Público. O máximo que haverá é a possibilidade de apresentar justificativas razoáveis para o desabastecimento do fármaco na rede pública, seja por atraso do fornecedor ou por falta de matéria-prima, o que não obsta o reconhecimento do direito pleiteado, mas pode, eventualmente, ensejar a concessão de um prazo para o restabelecimento da política pública.


Por outro lado, se para a mesma moléstia for prescrito o Aripiprazol, há muito que se contrapor à pretensão, pois a referida substância não foi incorporada às políticas públicas por nenhum ato administrativo.


Além disso, existem outras substâncias – como a própria Risperidona – que fazem parte dos PCDTs do Ministério da Saúde e possuem uma melhor relação de custo-benefício para o tratamento do TEA.


Nessa linha de raciocínio, há de se verificar, ainda, se há sustentabilidade em conceder o Aripiprazol para todos os pacientes com a mesma doença, afinal, o SUS não deve servir especificamente a um ou outro usuário, mas a todos em igualdade de condições.


Ademais, o próprio Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus), que é um órgão vinculado ao Conselho Nacional de Justiça, possui uma série de Notas Técnicas apresentando os motivos pelos quais se manifesta desfavorável à concessão de Aripiprazol.


Por fim, convém mencionar a existência de um precedente vinculante do Superior Tribunal de Justiça² que trata justamente da concessão de medicamentos não incorporados ao SUS.


Nos termos do que decidiu o STJ, há vedação à concessão de medicamentos off label (aqueles não aprovados pelos critérios de segurança e eficácia da ANVISA). Para os demais casos, em que o medicamento possui registro na ANVISA, mas não faz parte do SUS, o fornecimento depende de: i) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; e ii) Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito.


Ora, pelos exemplos enunciados é evidente que, a depender da prestação buscada, o Ente Público vai ter maior ou menor interesse em se contrapor ao pedido deduzido pela parte autora, principalmente se diante de um medicamento não padronizado, de alto custo ou, ainda, experimental.


Aliás, a prestação de saúde deduzida influencia diretamente nos fundamentos que a Administração Pública pode veicular a fim de se defender do pedido autoral e tais razões devem ser levadas em consideração ao se proferir uma decisão judicial.


Não só isso, em alguns casos o Poder Judiciário parece sinalizar, equivocamente, no sentido de que o indeferimento de determinada prestação (o Aripiprazol, por exemplo) obstaria o conhecimento de outra demanda pretendendo objeto distinto (a Risperidona), o que, evidentemente, advém da confusão acerca do objeto litigioso das ações de saúde.


Nessa esteira, várias regras processuais hão de ser invocadas para nortear o procedimento judicial das demandas de saúde, primeiro o art. 324 do Código de Processo Civil, que dispõe: “O pedido deve ser determinado.”.


Portanto, o pedido de “tratamento de saúde para determinada doença” é um pedido genérico, inadmitido no direito brasileiro, por violar a ampla defesa e o contraditório, pois a depender da prestação concretamente buscada, haverá ou não fundamento para que ela seja custeada pelo Sistema Único de Saúde.


Aliás, decisões judiciais que determinem: “a concessão de todas as prestações necessárias para o tratamento da saúde do autor” são, em verdade, um cheque em branco, emitido em prejuízo dos entes federativos e, principalmente, das políticas públicas estabelecidas.


Ademais, para os casos que a demanda já foi proposta e o autor pretende outra providência no curso do processo, há óbvia alteração objetiva da lide, e, sobre o assunto, destaca-se o disposto no art. 329, I e II, do CPC:


Art. 329. O autor poderá;

I – até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu;

II – até o saneamento do processo, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, com consentimento do réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar.


Não só isso, a própria formação do processo depende da pretensão deduzida.

Nesse sentido, consoante a regra insculpida no art. 337, § 2º, do Código de Processo Civil, uma demanda judicial pode ser particularizada a partir da percepção de três elementos básicos identificadores: partes, causa de pedir e pedidos.


Ou seja, a alteração da causa de pedir (próxima ou remota) e dos pedidos, induz um novo processo, logo, não pode o autor de uma demanda requerer, nos mesmos autos, providência diversa daquela inicialmente deduzida, salvo nas hipóteses do art. 329 do CPC.


Em casos extremos, mesmo após uma sentença, há pedidos de alteração do protocolo terapêutico para fármaco ou atendimento diverso daquele determinado pelo juízo e, nesses casos, não só há violação da ampla defesa e do contraditório, como se pretende uma prestação que sequer foi discutida no processo.


No contexto das situações delineadas, o melhor entendimento é de que cada providência buscada pelo jurisdicionado deve passar pelo crivo da razão, permitindo que a prestação de saúde específica, tomada como objeto do processo, seja amplamente contraposta. Afinal, conquanto a Saúde e a Vida sejam dois dos direitos mais caros do ordenamento jurídico pátrio, eles ainda encontram limite em outros postulados igualmente relevantes, como a máxima efetividade das políticas públicas, a impessoalidade e a eficiência administrativa, pois o Estado, tal como concebido pela Constituição Federal, é instrumento de bem-estar social e, sendo assim, deve proporcionar o máximo de desenvolvimento humano para a população nacional como um todo, o que obstaculiza o atendimento pleno de toda e qualquer pretensão que possa emergir de indivíduos tomados singularmente.



¹Incluídos nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS.


²REsp nº 1657156 / RJ (2017/0025629-7) Rel. Min. Benedito Gonçalves. Decisão: 25.04.2018.



OS AUTORES

Nathan Amorim é Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Acre, Campus Floresta (2018 – 2023). Atualmente é Advogado (OAB/AC 6.490) e Assessor Jurídico da Procuradoria Geral do Estado do Acre.


Pierre Elie Kassab é graduado em Direito pela Universidade Federal do Acre (2014-2019) e especialista em Direito do Estado e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Acre (2019-2021). Atualmente é Advogado (OAB/AC 5.447), Assessor Jurídico da Procuradoria Geral do Estado do Acre e Membro do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Acre. Além disso, foi Professor do Magistério Superior Substituto do curso de Direito na Universidade Federal do Acre - UFAC (2021-2023).

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