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  • Foto do escritorLeonardo Vasconcelos

O desvirtuamento da audiência de conciliação trabalhista

A prática é bem diferente da teoria. É o que sempre se fala durante a faculdade de Direito em relação a diversos pontos do estudo jurídico.


Mesmo reconhecendo essa diferença, o bom aluno deve se dedicar a aprender o máximo possível da teoria, afinal, somente assim terá condições de cobrar dos atores jurídicos que a prática siga o mais de perto possível a previsão teórica, principalmente quando esta se tratar de um dispositivo legal.


Dentre tantos aspectos que representam bem essa divergência prática x teoria, será destacado aqui apenas um para análise: a audiência trabalhista. Mais especificamente o momento dedicado à tentativa de autocomposição.


Inicialmente, cabe fazer breves comentários sobre a Justiça do Trabalho.


Trata-se de um ramo jurisdicional que possui os meios processuais para a resolução de litígios trabalhistas de forma especializada. Lembrando que não é somente para vínculo de emprego.


Toda a estrutura da Justiça do Trabalho leva em consideração a vulnerabilidade social, informacional e hierárquica do trabalhador – dentre outras.


Esse conjunto de vulnerabilidade demonstra bem que é o trabalhador o lado mais frágil da relação pois, em regra, é o que menos possui informações sobre a relação de trabalho, ele é quem deve seguir ordens dos seus superiores hierárquicos – que em última análise são os sócios da empresa – e ainda, que é o empregado que se encontra em situação social mais frágil.


Sobre isso, há um ponto de grande destaque na prática trabalhista processual: quando se trata de capacidade de gerar provas, o trabalhador se encontra em grande desvantagem já que em esmagadora maioria das vezes as provas documentais da relação de trabalho não são repassadas a ele, ou não o são em sua completude. Poucas empresas seguem as normas trabalhistas corretamente e entregam ao trabalhador cópia de tudo. Afinal, para isso, é necessário um trabalho de compliance, coisa que não é muito da cultura brasileira.


Toda essa vulnerabilidade se reflete na hipossuficiência do trabalhador, em especial a hipossuficiência econômica que impede a garantia de uma defesa de direitos processualmente em pé de igualdade com a reclamada, já que esta possui maiores condições de contratar defesa técnica mais qualificada, até mesmo uma banca mais completa de advogados.


Historicamente, devido à dificuldade que muitas regiões enfrentavam com oferta de advogados trabalhistas e também à falta de capacidade financeira de contratar um patrono, a Justiça do Trabalho institucionalizou o jus postulandi para que os trabalhadores possam ter maiores possibilidades de acesso à justiça, até mesmo sem advogado.


Tudo o listado representa bem a especificidade desse ramo do judiciário.


Em situação oposta à dos trabalhadores, estão as empresas. Claro que há muitas pequenas e microempresas que não se encontram em muita vantagem sobre seus funcionários. Mas para o presente estudo vamos levantar especificamente as condições econômicas das grandes empresas, sejam elas grandes em suas localidades ou nacionalmente falando.


São pessoas jurídicas com alto poder econômico, que podem manejar recursos financeiros com extrema facilidade, contratar os melhores funcionários da contabilidade, recursos humanos, advogados e ainda implementar planos de incentivo nas suas organizações que acabam levando, invariavelmente, à ocorrência de assédio moral nas suas relações verticais.


Empresas tão organizadas que até mesmo já contam em sua contabilidade com verba dedicada às despesas com judiciário para resolver processos trabalhistas ou consumeristas. Na advocacia, tive a oportunidade de observar de perto empresas como Azul, Latam e Coca-Cola que apresentaram comportamento no sentido de ter um caixa específico para processos. Mas no dia a dia, ao conversar com colegas, é muito fácil perceber outras empresas, a exemplo das que atuam no ramo de telefonia e energia elétrica.


Essa contextualização é necessária para partirmos para a análise pretendida.


A audiência de conciliação não é um instituto que foi implantado em um momento único e específico no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. É fato que houve um marco que possa representar a sua institucionalização mais recente: o Código de Processo Civil de 1973 com seu artigo 331 que determinava a realização da audiência preliminar com fim conciliatório. Posteriormente, com o advento da Lei 9.099/95 a conciliação, tanto quanto a mediação, ganhou mais corpo no processo civil.


Mas não se deve deixar de mencionar que desde 1514, com as Ordenações Manuelinas, e 1603, com as Ordenações Filipinas, ambas do ordenamento jurídico português e aplicáveis à colônia brasileira, a conciliação já se fazia presente no Direito brasileiro. Tal realidade se manteve na primeira Constituição do Império do Brasil mas perdeu espaço durante a primeira metade do século XX.


A criação de uma audiência preliminar, denominada atualmente de conciliatória, tem o objetivo claro de tentar dar celeridade ao processo ao oferecer às partes um momento antes da instrução que seja capaz de pôr fim à lide naquele ponto.


Ocorre que a doutrina nos últimos anos também tem destacado outro benefício desse momento processual: uma solução ao problema criada pelas próprias partes, sem a imposição de um terceiro, tende a ser mais satisfatória e ter a capacidade de se amoldar melhor às expectativas e anseios dos jurisdicionados. Não é à toa que mediação e conciliação têm sido chamados de meios adequados de resolução de conflito.


Tão bem reconhecida tem sido essa visão que o Código de Processo Civil de 2015 foi preenchido pelo incentivo à autocomposição em todos os momentos processuais. Devendo, sempre que possível, ser realizada a audiência conciliatória, mas – mesmo que não se logre o acordo – o juiz deve incentivá-lo no início e no fim da audiência de instrução. O Diploma processual vai além, ao permitir que as partes cheguem a um acordo até mesmo durante a fase de cumprimento de sentença ou em processo de execução por título extrajudicial. A todo momento se deve tentar conciliar o conflito.


Contudo, não se pode deixar de mencionar que o caminho que a conciliação experimentou na Justiça do Trabalho foi consideravelmente diferente.


Tendo essa justiça nascida como um órgão do Poder Executivo, sem função jurisdicional, de início, toda a sua atividade se resumia a tentar a conciliação entre empresas e trabalhadores. Não logrando a conciliação, encerrava-se a reclamação trabalhista “sem julgamento de mérito”, como se diria na terminologia contemporânea.


Mesmo com sua evolução história até chegar à sua autonomia com função jurisdicional, compondo o sistema judiciário brasileiro, a essência conciliatória nunca abandonou a justiça do trabalho. Inclusive, todos os Tribunais Regionais do Trabalho possuem seus Núcleos de Resolução Consensual de Conflito, no TRT14, por exemplo, ele se denomina Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Solução de Disputas – CEJUSC.


Os CEJUSCs são especializados em tentativas autocompositivas de resolução da lide utilizando técnicas específicas a adequadas para tal atividade. É o retrato da importância da mediação e conciliação no judiciário trabalhista.


Falando em técnicas adequadas para a conciliação, é importante mencionar que faz parte da base principiológica dos métodos adequados de resolução de conflito o sigilo da negociação e a interferência mínima do magistrado. Ambos princípios têm o objetivo de deixar as partes mais à vontade para falarem sobre suas angústias, frustações e expectativas relacionadas ao conflito. Tendo certeza de que ninguém de fora tomará conhecimento do que será dito, a probabilidade de autor e réu colocarem as cartas na mesa é maior.


Da mesma maneira a interferência mínima do magistrado. Não há impedimento legal para que o juiz participe da audiência de conciliação. O que é disposto na Lei é que ele poderá ser assistido por conciliadores e mediadores do Poder Judiciário. Contudo, para dar mais tranquilidade às partes, para que elas digam tudo o que quiserem dizer sabendo que o juiz que julgará a causa não tomará conhecimento e assim favoreça a autocomposição, em regra o magistrado não está presente no ato.


Isso faz com que a audiência trabalhista, que deveria ser una por disposição legal, acabe sendo dividida em duas: a audiência inaugural com intuito conciliatório; e a audiência de instrução que, no Estado do Acre, costuma ocorrer de 1 a 2 meses depois da primeira.


O lado positivo dessa cisão é o já mencionado: sigilo do que for falado tanto em relação a terceiros alheios ao processo como em relação ao magistrado que julgará a causa e também a maior possibilidade de resolução mais ágil do conflito.


Mas, como tudo na vida, há também o ponto negativo da ausência do juiz no ato conciliatório e esse ponto negativo é o cerne do presente artigo.


Ocorre que, sabendo que o magistrado não estará presente, boa parte das reclamadas (grandes empresas em regra) praticam a verdadeira instrumentalização da audiência de conciliação em favor do capital. O fazem da seguinte maneira: depois de violarem escancaradamente diversos direitos do trabalhador, ofertam uma proposta de acordo com valor extremamente abaixo do que seria de fato devido contando que, por estar em situação de necessidade, o reclamante aceitará aquele valor pensando “é melhor garantir esse dinheiro agora do que esperar não sei quanto tempo e não saber quanto e quando vou receber”.


Muitas vezes o trabalhador está desempregado, sem nenhuma renda familiar em sua casa, com filhos e sem ter condições de honrar com as despesas da subsistência familiar.


Já patrocinei uma demanda pelo trabalhador em que após 29 anos de trabalho na mesma empresa, esta inventou uma justa causa para mandá-lo embora. Obviamente ela sabia que não existia justa causa de fato.


O trabalhador ficou repentinamente desempregado, sem nenhum recurso financeiro em mãos, com sua esposa também desempregada e enfrentando tratamento de câncer de mama. Ao chegar o momento da audiência de conciliação, a empresa apresentou a proposta para somente reverter a modalidade de dispensa para que o reclamante pudesse acessar o seguro desemprego e o saldo do FGTS que já estava depositado em conta. Nada mais.


Diante dos detalhes e das provas acostadas aos autos, ficou evidente que a proposta era absurda. Conduta patronal que violava explicitamente a dignidade da pessoa humana do trabalhador, principalmente diante do contexto social em que este se encontrava.


Observando isso, os dois patronos do reclamante, eu e um colega, nos manifestamos contra a proposta, aconselhando-o e advertindo em relação a todas as possibilidades (grandes até) que tínhamos na causa e deixando claro tudo o que ele iria perder se aceitasse. Ainda assim ele se manteve firme de que queria aceitar o acordo. Destaco que o magistrado não estava presente na audiência, pois era de conciliação, mas, percebendo a situação, o conciliador solicitou ao juiz que se fizesse presente e este o fez. Falou diversas vezes com o reclamante, inclusive pedindo-o que olhasse diretamente na câmera (pois era audiência online) para ter certeza de que não estava sendo instruído a aceitar o acordo. Mesmo com tudo isso, o trabalhador aceitou. Abriu mão de todos os direitos trabalhistas que foram violados e estavam mais do que claro no processo, sem nenhuma prova para defesa de direitos da reclamada. O benefício para a empresa foi que apenas precisou ajustar a CTPS para modalidade de dispensa sem justa causa, sem precisar pagar nenhum dos direitos trabalhistas até mesmo que seriam decorrentes dessa modalidade de dispensa.


Por que meu cliente aceitou? Estado de necessidade. É jogando justamente com essa situação social dos trabalhadores que muitas empresas fazem a verdadeira instrumentalização da audiência de conciliação para legitimar, através do judiciário, a violação dos direitos trabalhistas.


O leitor poderia se perguntar porque os patronos não se insurgiram e impediram a realização do acordo, já que os advogados têm autonomia na sua atividade. Bem, até poderia ser feito, mas com isso surgiria uma possibilidade muito factível do cliente acionar os profissionais por perdas e danos que entendesse terem havido, bem como abrir um processo disciplinar no Tribunal de Ética e Disciplina na OAB por terem ido contra os direitos e autonomia de sua vontade do cliente no processo em que o representaram.


Na nossa atuação profissional como advogados precisamos ter em mente que nossos clientes são detentores da sua autonomia de vontade e que um acordo nada mais é do que uma expressão de um negócio jurídico. Como um dos elementos de validade do negócio jurídico, a manifestação de vontade livre e desimpedida também deve ser levada em conta na conciliação trabalhista. O que nos resta, como patronos, é aconselhar o cliente sobre os riscos da decisão que ele está tomando.


Ademais, o próprio magistrado tem prerrogativas para não homologar um acordo, mesmo tendo sido feito em audiência judicial, caso ele perceba que é prejudicial ao trabalhador ou que lese a ordem jurídica.


O doutrinador Mauro Schiavi[1] (p.33) observa que "pode o Juiz do Trabalho deixar de homologar o acordo quando, nitidamente, prejudicial ao empregado, vise lesar a ordem jurídica ou for objeto de simulação das partes para prejudicar terceiros."


Isso significa que aquele juiz que apareceu na audiência de conciliação para conversar pessoalmente com o reclamante poderia perfeitamente não homologar a autocomposição posteriormente com o fundamento acima, mas não o fez.


Para finalizar, podemos listar alguns direitos e princípios que são violados pela instrumentalização da audiência de conciliação manipulada pela reclamada.


Certamente, tal conduta viola a boa-fé objetiva, considerando que esse ato beira a má-fé de maneira sendo quase in ré ipsa. Ademais, com a efetivação dessa manipulação do judiciário, fica severamente prejudicado o direito constitucional ao acesso à justiça, lembrando que esse direito não diz respeito somente a ingressar com uma ação no judiciário, mas sim em ter o direito discutido devidamente solucionado em seu mérito.


Também se demonstra violado o devido processo legal, considerando que a finalidade da audiência conciliatória foi deturpada para outros fins.


Para finalizar, o princípio da proteção ao trabalhador, direito material e princípio basilar presente na Consolidação das Leis do Trabalho é plenamente anulado em uma situação como essa, tendo em vista que o empregado teria tido muitos direitos violados e que o meio processual para solucionar essa violação não teria atingido a sua finalidade.


Solucionar a problemática apresentada não é questão de criar novas leis e normas, as que já existem são suficientes. É possível que a melhor solução seja a fiscalização mais próxima do juiz da causa em relação aos termos do acordo, não para violar a liberdade negocial das partes, mas para garantir que os direitos básicos do trabalhador não estejam sendo agredidos e impedir que a ordem jurídica seja atacada através da deturpação dos fins da audiência de conciliação.

[1] SCHIAVI, Mauro. Manual didático da audiência trabalhista. Salvador: JusPodivm, 2020.



Leonardo Fontes Vasconcelos é pós-graduado em Direito Processual Civil. Assessor ministerial no Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional do MPAC, licenciado da advocacia. Diretor da Capital Jurídico. Professor de Direito do Trabalho. Professor da Escola Superior da Advocacia da seccional Acre.
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