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  • Foto do escritorDanilo Scramin Alves

O estado da arte de se pesquisar e publicar no direito

Historicamente, o desenvolvimento de pesquisas no direito sempre partiu de autores já formados, experientes e normalmente já conhecidos no mundo jurídico. Eram, durante esse período, autores no direito os grandes juízes, os renomados advogados ou os experientes professores dos cursos de direito (cabe aqui inclusive reforçar que, apesar de não haver controle, social ou de qualquer outro tipo, para tanto, a quase unanimidade desses professores eram oriundos das instituições públicas).


De uma certa forma, o sistema se retroalimentava: nas graduações e nas pesquisas jurídicas, prevaleciam as obras daqueles já renomados, e, caso os “novatos” tivessem interesse em pesquisar e publicar, as publicações resultantes teriam que ser necessariamente chanceladas pelos renomados juristas, a quem seria atribuída, em último estágio, a teoria desenvolvida na peça.


É difícil dizer, a partir dessa percepção, em uma questão paradoxal similar à famosa “o que veio primeiro, o ovo ou a galinha”, o que se considera jurista, na medida em que a palavra é, ao menos tradicionalmente, associada àquele que possui o “lugar de fala” dentro da ciência jurídica. Seria jurista aquele profissional que possui experiência e vivência (ou talvez, sendo muito mais franco, o renome) suficiente para ser autor no direito? Ou seria jurista aquele autor do direito que, por sua experiência e vivência (de novo, renome), pode ser de fato um autor no direito?


O fato é, sem que se tenha interesse em resolver esse imbróglio desnecessário, que jurista, ao menos consagradamente, ficava reservado a estes altos seres do direito, cujas teorias lhes eram próprias não por tê-las necessariamente desenvolvido, mas por poderem impulsioná-las em razão de já ocuparem um lugar especialmente relevante no mundo jurídico.


Tal qual o ovo e a galinha, o jurista não surgia em um momento “jusepifânico” e necessariamente foi, como todos os outros, um cidadão normal, um estudante, um não-jurista. Então, resta a pergunta, como seria possível qualquer pessoa do povo conquistar o título de jurista?


A realidade é que isso exigia, ainda que minimamente, pelo menos duas coisas: oportunidade e uma vida de dedicação. Naquela época, não se tornava jurista com facilidade, nem por mero acaso, e provavelmente nunca por sorte.


Aqui cabe um alerta que desde a primeira palavra deste texto é necessário fazer: não há aqui qualquer intenção de criticar os juristas mencionados até então, ainda que em determinados momentos da retórica tenha parecido que haja um ressentimento (inveja?) dessas figuras históricas. Na mais absoluta sinceridade, trata-se apenas de um recurso narrativo para ilustração da aparente “inalcançabilidade” dessas figuras, especialmente porque de fato merecem o reconhecimento que possuem, diante das dificuldades superadas para que chegassem a este espaço.


A Fundação Getúlio Vargas – FGV fez, em 2020 e a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil, um relatório com os números referentes ao exame de ordem, o que necessariamente precisou fazer um estudo sobre os cursos de direito, de onde saem os candidatos do exame.


A partir da leitura desse relatório, cabe fazer o segundo alerta. O presente artigo tem falado de tempos idos como se fossem anos e anos atrás, mas o fato é que essa realidade está extremamente próxima.


Pelo relatório, é possível perceber que, no ano 2000, havia no Brasil “apenas” 443 cursos de direito. Considerando que a população do Brasil era, nesta época, aproximadamente 176 milhões de pessoas, cada curso de direito atenderia, em um exercício completamente ignorante de estatística que não passaria por qualquer crivo científico, 400 mil pessoas.


E, frise-se, já havia ocorrido uma melhora significativa, pois em 1995, apenas cinco anos antes, ou seja, meramente o período para formar uma turma de direito do início ao fim, eram apenas 235 cursos. Na mesma matemática porca, eram 710 mil pessoas por curso. Neste período de 5 anos, quase dobrou o número de cursos. A última quase-dobra tinha levado quase 26 anos, já que em 1974 havia 122 cursos de direito no Brasil (868 mil pessoas por curso).


Ou seja, ainda que o passado mais distante (mas não tão distante assim, se considerarmos que o primeiro curso de direito já tem quase 200 anos) tivesse uma realidade ainda mais dura, mesmo em 2000, de forma alguma há muito tempo, o acesso a um curso de direito ainda era difícil. Para que se possa comparar, calcula-se que haja hoje no Brasil 1.800 cursos de direito, para uma população aproximada de 211 milhões de habitantes (117 mil pessoas por curso).


Isso significa que a própria peneira de se ingressar em um curso de direito já era, por si só, um limitador importante e significativo na jornada de se tornar um jurista.


Mas na hipótese de a pessoa conseguir entrar (e, talvez mais importante ainda, sair) com sucesso da graduação em direito, ainda havia todo o processo de transformação do profissional recém-formado em uma autoridade jurídica. De novo a oportunidade e o esforço eram necessários. Não apenas a pessoa precisava ter interesse em conquistar esse espaço, ela precisava necessariamente se dedicar a isso. Essa dedicação precisava levar em consideração a própria carreira do profissional como também a devoção aos altos estudos em direito, consubstanciados em doutorado em direito. Veja-se, hoje, reconhecidos pela CAPES, há apenas 57 cursos de doutorado na área do direito. Isto, frise-se, em 2023.


Mais uma vez, os juristas passados eram (aliás, ainda são) renomados, mas com razão, pois eram poucos e que necessariamente precisavam passar por um caminho árduo.


Porém, a reflexão que se deseja transmitir aqui é: isso ainda é a realidade? Ainda se exige do pesquisador do direito (para não confundir com a figura histórica do jurista) que a sua pesquisa e publicação seja alicerçada por tal caminho de pedras duras e pontiagudas?


A verdade é que não. Não há como mais se manter essa exigência.


E aqui cabe o terceiro alerta, desta vez com o objetivo de não ofender aqueles que já passaram pelo caminho. Por óbvio, aqueles que dedicaram longas carreiras ao direito e que se dispuseram a proceder as renúncias e os esforços significativos para fazer um doutorado em direito possuirão um lugar de destaque na realização de pesquisas e publicações jurídicas, visto que é possível crer que, diante de sua experiência profissional e acadêmica, estão menos propensos a erros e mais propensos a boas reflexões teóricas.


A questão essencial é que a sociedade avançou a um momento em que a transmissão de ideias e de pensamentos, e o consequente debate deles, é rápida e muito mais facilitada. Qualquer pessoa hoje consegue ter acesso a (quase) qualquer tipo de informação, e, com base nela, passar por um processo reflexivo que resulte em conclusões teóricas que podem ser compartilhadas. Não seria isso o que se entende como “pesquisa e publicação”?


Obviamente, com uma frequência assustadora, ocorrem instâncias de reflexões pautadas em achismos ou em retóricas falsas ou falseadas, o que necessariamente resultam em conclusões igualmente falsas ou até francamente absurdas.


A questão é que, mesmo os juristas-divindades do passado estavam sujeitos ao mesmo risco, seja por as vezes cometerem erros, ou caírem em armadilhas retóricas, ou até mesmo por mero idealismo cego em crenças que podem inclusive ainda existir, ainda que continuem tão falsas quanto ao tempo passado.

Ou seja, no processo de pesquisa especialmente, erros e absurdos podem acontecer. O que se espera é que esses erros, e principalmente os absurdos, não cheguem à publicação. A ciência jurídica, cabe alertar, tem diversos instrumentos que podem, em tese, impedir isso, como a revisão por pares de artigos e a avaliação de obras por conselhos editoriais, por exemplo.


Entretanto, o mais essencial de se perceber agora é que toda pessoa pode exercer o processo reflexivo exigido para a pesquisa científica, e o processo científico-jurídico não é diferente.


Não há como negar, obviamente, que o fato de o direito ter uma estrutura firmemente baseada regras e princípios cuja desconstrução é extremamente complexa e depende necessariamente de uma argumentação técnico-científica que exigem minimamente o porte dos juristas de antigamente, não há como “qualquer um” exercer o processo de pesquisa para publicação no direito. Há a necessidade de minimamente se conhecer essas regras e princípios.


A grande questão é que já se percebeu que esse conhecimento é diferente de um ponto-destino, que somente após a chegada permite o resultado, mas sim um processo que, na atual estrutura educacional brasileira, se inicia na graduação em direito.


E aqui se alcança o objetivo de toda essa divagação. Chegamos finalmente a um momento em que a pesquisa e a publicação já podem ser, guardadas as devidas proporções e respeitados os necessários limitadores, iniciadas desde a graduação.


A isto se convencionou chamar de iniciação científica, em que se busca aliar o processo de graduação à pesquisa. Cabe o aviso de que já é possível falar inclusive falar em iniciação científica no ensino básico, mas o Brasil infelizmente ainda não reconheceu a importância de que o direito já seja apresentado desde essa época.


A conclusão é: os estudantes de direito hoje já podem ser juristas, caso para tanto tenham interesse. Para evitar os mencionados erros e absurdos, a iniciação científica contém uma série de requisitos e limites, como por exemplo o acompanhamento por um docente que necessariamente já está mais próximo do conceito tradicional de jurista. É deste profissional a árdua missão de garantir que o resultado da pesquisa e da publicação tenha valor científico.


Mas a realidade é que esses estudantes, com suas próprias vivências e suas próprias reflexões, já podem contribuir efetivamente para a ciência jurídica. E deve-se dar valor a essa contribuição.


Em recente palestra proferida no Acre, discursei sobre como a pesquisa da iniciação científica não precisa se pautar em temas complexos, críticos e que possuirão impacto econômico ou financeiro, com inegável contribuição social. Apesar de valioso que isso ocorresse, beira o utópico, e na esmagadora maioria das vezes tem o condão de criar profissionais extremamente avessos à ideia da pesquisa e da publicação.


A meu ver, a melhor iniciação científica parte de temas de interesse do graduando, por mais inusitados que sejam. Logicamente, esses temas precisarão conversar com questões jurídicas e ensejar uma reflexão que tenha alguma importância ainda que teórica, reforçando, aqui, mais uma vez, o papel do professor orientador, a quem caberá esse crivo.


Mas é importante reconhecer que, ao oportunizar ao estudante que case seus próprios interesses com a pesquisa jurídica, o resultado será mais positivo e o interesse na pesquisa e na publicação no direito será mais prevalente no futuro.


A presente edição da Revista Capital Jurídico se dedica a isso. É resultado de pesquisas feitas a partir da escolha de estudantes, mas que trarão reflexões que poderão ajudar a sociedade e os demais pesquisadores, e, no mundo mais perfeito, conduzirão esses alunos ao ponto-destino anteriormente guardado aos tradicionais juristas.


O AUTOR

Danilo Scramin Alves é analista processual no Ministério Público do Estado do Acre, diretor do podcast Capitalcast, Coordenador do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do MPAC, doutorando em Ciência Jurídica, mestre em Direito e professor da Universidade Federal do Acre.




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