Práticas abusivas de faculdades e as regras das relações de consumo
- Leonardo Vasconcelos
- 2 de set. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 6 de jul. de 2022
Desde os tempos da Grécia antiga, a universidade buscou levar o aluno o máximo possível dentro do conhecimento da área que ele decidiu estudar.
Se considerarmos a Academia de Platão como a primeira universidade da história, veremos que já desde 387 a.C. – quando foi fundada – era assim que se fazia.
Há relatos de que a vivência no aprendizado da academia platônica durava não menos do que 10 anos, podendo se estender facilmente para mais uma década.
Contudo, acaso o leitor não considere a de Platão como a primeira universidade da história, deverá, então, reconhecer a Universidade de Bolonha como a primeira do mundo. Ainda assim, verá que o ensino acadêmico existe desde, no mínimo, o ano de 1088 d.C.
Atualmente, no ensino superior deve ser abordado o máximo possível de conteúdo técnico e teórico da área específica e colocar o acadêmico tanto quanto for necessário, e estiver dentro das possibilidades, imerso na prática da profissão.
Essa jornada pode ser árdua e puxada para o cursando, mas é necessária.
Todavia, não obstante a necessidade de máxima preparação do acadêmico, não se deve esquecer que a relação faculdade-aluno é uma relação de consumo e, como tal, é regida pelo Código de Defesa do Consumidor.
No cotidiano acadêmico, a figura representativa da instituição de ensino perante o aluno é o coordenador de curso. O que é condizente com o disposto no Código Civil, em seu artigo 932, III, combinado com o artigo 34 do CDC, que determinam a responsabilidade do empregador em relação aos atos dos seus empregados e prepostos “no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”.
Nesse ponto é onde reside a problemática em análise neste breve escrito: os coordenadores de curso (qualquer que seja o curso), em sua quase absoluta maioria, desconhecem as suas obrigações legais como a supracitada obrigação cível e, principalmente, as obrigações estipuladas no Código de Defesa do Consumidor.
Tal desconhecimento os leva, com certa frequência, a cometer práticas que o diploma consumerista considera abusivas.
Não se questiona a autoridade do coordenador no curso, de fato ela existe. Mas também não se pode perder de vista que essa é uma relação de consumo e que, como já se sabe, o consumidor é o vulnerável nessa relação e por isso há normas legais que o protegem de abusos praticados pelo fornecedor de serviço – nesse caso a instituição de ensino através do seu coordenador de curso.
Tal vulnerabilidade é tratada nos artigos 4º, I e 39 do CDC que, além de prever a vulnerabilidade legal, qualifica como abusivas as práticas que exijam do consumidor vantagem claramente excessiva ou que se utilizem de sua fraqueza “para impingir-lhes seus produtos ou serviços”.
É claro que a atividade de ensino superior, sendo regida pelo Ministério da Educação, tem suas próprias normas como as portarias do MEC e as da própria instituição de ensino, fazendo com que os alunos devam “bater metas”, cumprir requisitos, para prosseguir no curso e se formar.
Isso significa que o coordenador de curso pode, e deve, exigir determinadas condutas e impor certos ritos e procedimentos para que o acadêmico prossiga na trilha correta da sua graduação.
Por outro lado, as normativas do MEC não podem se sobrepor às regras do Código de Defesa do Consumidor, pela natureza coercitiva desta Lei Federal e sua posição na hierarquia das normas. Mais absurdo ainda seria imaginar, e esperar, que as portarias da instituição de ensino pudessem contradizer as previsões do CDC.
Dito isso, partamos para a análise das práticas abusivas que são passíveis de constatação ao se observar as relações consumeristas nas instituições de ensino superior tendo o coordenador de curso como ator ativo.
Práticas abusivas in casu
Uma delas é o acadêmico ser constantemente surpreendido com alterações abruptas na relação de consumo, como mudanças repentinas e frequentes nos horários de aula dentro do mesmo período letivo, o que o leva a não conseguir realizar um planejamento da sua vida acadêmica e pessoal a contento, sempre se deparando com situações estressantes por ter que alterar todo o seu planejamento em cima da hora.
No mesmo sentido se visualiza o agendamento de aulas extras marcadas em cima da hora, com constância no mesmo dia em que a aula será realizada, sem que haja a devida comunicação com antecedência necessária para que o aluno possa se planejar para assistir à aula.
Nesse ponto há de se lembrar que, não conseguindo assistir à aula por ter sido “pego de surpresa”, obviamente o acadêmico levará falta, prejudicando o seu desempenho pela perda de conteúdo e correndo o risco de ser reprovado por falta.
Claramente conduta abusiva na relação de consumo que ignora por completo o princípio da informação qualificada, representa o clássico venire contra factum proprio, já que anteriormente a instituição havia mencionado os dias em que haveria aulas (não incluindo esse dia em específico) mas agenda aula extra em cima da hora para ser realizada no mesmo dia.
Também é de bom tom mencionar as já conhecidas e famosas perseguições contra alunos que, por qualquer motivo que seja, caíram em desagrado diante de professores e da coordenação.
Há relatos de reuniões fechadas entre coordenação e alunos em que o coordenador de curso deixou claro que nos bastidores há compartilhamento de informações entre os professores e que determinados alunos ficam malvistos e são indiretamente, e de forma sutil, penalizados por não terem caído no gosto do corpo docente.
Constatação essa empírica e coerente com a natureza deste trabalho.
Seguindo, citamos as exigências que se mostram pesadas para a maioria, senão todos, os alunos da turma.
Essas exigências podem se dar em cobrança para que os acadêmicos adquiram equipamentos, vestimentas ou outros itens que não haviam sido informados quando da inscrição no curso e que também não são condizentes com a natureza deste.
A ausência desses itens acarreta a proibição do aluno de realizar determinados atos ou até mesmo uma disciplina inteira.
Outra conduta da coordenação do curso a se observar é não dar respostas aos pleitos dos acadêmicos, enquanto as demais instâncias da instituição insistem que o assunto deve ser tratado com a coordenação.
Isso prejudica a vida acadêmica do consumidor, pois seus pleitos significam verdadeiras reclamações em relação à qualidade da prestação do serviço, ou seja, podem até mesmo representar a existência de vícios do serviço.
Ignorar tais pleitos é o mesmo que ignorar uma reclamação do consumidor.
Há dois últimos pontos que merecem uma ressalva prévia.
Um contrato de prestação de serviços de ensino superior é um contrato de execução continuada que perdura consideravelmente no tempo, geralmente entre 4 e 5 anos.
Sendo dividido em diversas disciplinas, até 6 por semestre, é exigir demais do prestador de serviço que ele informe ao aluno-consumidor no ato da sua inscrição, ou na oferta do curso, detalhadamente tudo sobre como se dará pormenorizadamente cada disciplina.
Contudo, há marcos e momentos de tamanha relevância na vida acadêmica que não só podem ser informados no ato da inscrição, como devem ser avisados nesse momento.
Por exemplo, ao se inscrever no curso de fisioterapia, o acadêmico pode perfeitamente ser avisado que futuramente, nos últimos semestres, ele irá realizar estágios supervisionados na clínica da instituição. Portanto, a instituição deve comunicar todos os detalhes necessários para o aluno saber que naquele momento do seu curso ele deverá adquirir vestimentas próprias, que provavelmente haverá atendimentos que ele deverá realizar fora do horário comum das aulas, que a responsável pela clínica é a coordenação desta e não a coordenação do curso e todas as demais informações necessárias ao consumidor.
Mas, o que se vê é que tais informações não lhe são repassadas, chegando no momento de realizar os atendimentos na clínica-escola e o acadêmico sendo surpreendido com formatos completamente diferentes do que experimentou em todo o contrato de prestação de serviços educacionais.
Isso leva a situações em que as aulas normais são agendadas para o mesmo horário dos atendimentos na clínica-escola (uma vez que as coordenações da clínica e do curso não são as mesmas e pode haver falta de comunicação adequada entre ambas), ou seja, o acadêmico deverá escolher para qual dos dois irá. Independente da sua escolha, ele sofrerá perda e penalização pela falta naquela aula ou atendimento que não realizará.
Tudo isso poderia ser evitado se fosse honrado o dever de informar com qualidade por parte do prestador de serviço que é a instituição de ensino.
Princípios em jogo
É facilmente possível identificar ao menos cinco princípios que estão relacionados, ou violados, diante de todo o contexto descrito.
A começar pela vulnerabilidade do consumidor, reconhecida como princípio em Lei no artigo 4º, I do CDC.
O artigo 39, V do mesmo diploma, veda ao fornecedor de serviços exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. Esse excesso pode ser observado em algumas das condutas acima descritas, como a imprevisão das aulas que faz com que o acadêmico tenha que abandonar todos os seus afazeres às pressas para correr e não perder a aula marcada em cima da hora, sob pena de receber falta e perder conteúdo.
Também está presente o venire contra factum proprio, observado no fato de a coordenação divulgar os dias e horários de aula, mas posteriormente cobra a presença dos acadêmicos em aulas que não estavam previstas.
O princípio do venire contra factum proprio, existe justamente para proibir o comportamento contraditório por parte do prestador de serviço, impedindo-o de agir abruptamente, surpreendendo o consumidor.
Os fatos mencionados sobre a falta de informação em relação ao funcionamento de momentos importantes do futuro do curso violam o princípio da informação qualificada, previsto nos arts. 6º, III e art. 46 do CPC.
A informação prestada de maneira clara, inequívoca e com utilidade ao consumidor é vital para a validade do contrato de prestação de serviço. Não pode o aluno cursar 4 anos de curso e no último ano ser pego de surpresa com fato importante que não foi avisado anteriormente, fato esse que é fundamental para que ele prossiga ou não na sua vida acadêmica.
A soma de todas as práticas abusivas trabalhadas neste texto deixa claro que pode haver abuso de direito da coordenação do curso de ensino superior. O coordenador tem prerrogativas na relação de consumo para velar pelo bom desenvolvimento do curso de ensino e da vida acadêmica do consumidor, mas abusar desse direito tornando difícil e demasiadamente onerosa a participação do consumidor-aluno nessa relação é claramente abuso de direito. Lembremos que o ordenamento jurídico brasileiro, em especial o sistema de consumo, veda o exercício abusivo dos direitos por parte de seus titulares, caso contrário será ato ilícito.
Todas as violações aqui descritas, juntas, afrontam a boa-fé objetiva na relação de consumo e geram responsabilização à instituição de ensino, considerando que o empregador é responsável pelos atos de seus prepostos.
Por fim, é evidente que tudo isso é sanável para o bom desenvolvimento dos contratos de consumo entre instituição de ensino superior e os consumidores-alunos. Para tanto, os coordenadores de curso necessitam ter ciência das responsabilidades legais que lhe incubem.
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